quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Contraste

O seu nome eu não sei. Sei que tem umas feições bem abrasileiradas. Sim, pois a mescla de origens é o comum traço do estereótipo brasileiro. Uma pele nem branca, nem negra. Uma cor mediana assim, meio tostadinha... nem mal passada, nem bem passada. É, essa tal cor de cuia. Uns cabelos pretos grossos, os quais se notava serem penteados compulsivamente para trás e fixados e endurecidos a gel - para que na hora do serviço não lhe caíssem nos olhos (mas bem que se notava uma pequena mecha insistente escorregando sobre a testa -sabe-se lá ser vaidade ou acidente). Possui um nariz avantajado e uns olhos grandes – íris negra, esclera avermelhada -. Não era nem de longe bonito. Vestia umas camisas largas jogadas, que até lhe disfarçavam a magreza. De adorno usava no pescoço um cordãozinho de couro preto. Nada demais mesmo. Nada de menos, também.

O fato que chama a atenção não está nas linhas físicas, e sim no que se adentra o corpo. Ele ,certa vez, disse que a escolha pelo estilo de vida adotado veio após a morte da mulher. O "como ela morreu" não se teve coragem de indagar. Quem sabe um acidente, uma doença. De velhice, não. Pois ele é novo: trinta e poucos. Desde então, resolvera largar o emprego fixo, o qual lhe impunha rigidez de horário e compromisso regrado. Não que houvesse largado algo muito bom - não ganhava muito, não -, mas tinha uma estabilidade, ainda que mesquinha.

Hoje vive de bicos. É pintor, marceneiro, carpinteiro. É daqueles que fazem serviços gerais. Quebra-galhos, Severino. Mas, sobretudo, é técnico em cigarros. Sabe tudo sobre fumo, tabaco, sobre efeitos e benefícios. Malefícios: a estes não desconhece, mas simplesmente ignora-os. É só conversar com ele sobre o assunto que se notará um brilho nos olhos. E gesticula e se anseia tentando traduzir o bem que uma tragada lhe faz. Daí passa a falar de música, da vida, da liberdade alcançada.

Diz que quase não come – a mulher que lhe preparava a comida. Não é estudante, mas passa a Miojo. Seu meio de transporte é uma bicicleta rústica. Dorme o quanto lhe convém, pois os horários de trabalho não são fixos, e é isto que lhe serve de ânimo. Recebe pouco pelos serviços. Mora em quarto alugado. Não tem filhos nem parentes, apenas amigos de momento com os quais troca meia dúzia de palavras – uma dúzia quando sente que algum indivíduo possa o entender. Vive mendigando moedas para os conhecidos dos locais que freqüenta, e disto não tem vergonha. Até ri quando algum lhe diz: “não dou não, sei que vais direto comprar um desses charutinhos de câncer”.

Se é feliz? Acho que sim. Ele é um contraste, e tiros de condenação são lançados seguidamente a ele. É corajoso, muito. Coragem por furar as regras, por abdicar de seguranças. Ou, por isso mesmo, é medroso, arredio e fraco? Depende do ângulo. Ele diz que tudo é uma opção de vida. Abriu mão de conforto, de estabilidade, de família. Ainda assim, talvez não se sinta solitário... Ou talvez se sinta e esta tenha sido a diretriz principal da sua maneira de ser.


Liana de V. N. Coll


OBS.: Baseado em fatos reais de um pelotense muito curioso.

8 comentários:

Anônimo disse...

espera, espera que eu já li isso!

e eu sei quem é, sei sim.
Outro dia tu descreveu (descreveste) ele pra mim!

Ananda Muller disse...

Liana, e tu ainda me diz que não tava inspirada... Lindo! De verdade, tocante!

Liana Coll disse...

hehehhe demorou p cair a ficha! adorei o texto! beeijo

Liana Coll disse...

Ahhh é a Carol bixooo, com teu nome!

Acervo Café Frio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

nossa, incrível como dá pra imaginar perfeitinho.
lianinha é dama das letras ;*

Acervo Café Frio disse...

Se um dia ele chegar apl Santa Maria...conseguirá cadeira cativa no ministério dos Condores...
Um texto bom, uma história boa e um sentimento que, vários conhecemos e iremos conhecer...
Meus textos preferidos. Sigo com esta afirmação.

Felipe Severo disse...

Sim, Bibs! É a imagem perfeita de um Condor!
Ótimo, Liana... mostrou ser tão boa em textos de alto teor filosófico quanto em textos mais descritivos quanto esse!
Nunca li algo que tu escreveu e eu não tenha gostado!
Bjo!